domingo, 2 de novembro de 2008

O ESTADO CONSTITUCIONAL CONTRA O ESTADO DE DIREITO E CONTRA A DEMOCRACIA: ASPECTOS DA CRISE PARADIGMÁTICA NO DIREITO E NO ESTADO

O ESTADO CONSTITUCIONAL CONTRA O ESTADO DE DIREITO E CONTRA A DEMOCRACIA: ASPECTOS DA CRISE PARADIGMÁTICA NO DIREITO E NO ESTADO

Nelson Juliano Cardoso Matos

[Teresina – 2008]

Constitucionalismo, para Ronald Dworkin, é "a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados para que se protejam os direitos individuais"[1].

Ainda que se possa fazer alguma referência precedente, como o Instrumento de governo de Oliver Cromwell, o constitucionalismo norte-americano é o marco do moderno constitucionalismo. É necessário afirmar "constitucionalismo norte-americano" e não a Constituição dos Estados Unidos, de 1787, porque o constitucionalismo só ganha sua definitiva feição, com a decisão Marbury versus Madison, de 1803[2]. Apenas com a decisão de John Marshall é proclamada a supremacia constitucional.

O tribunal constitucional e a teoria de Gustav Zagrebelsky

Sob a perspectiva norte-americana, portanto, o constitucionalismo moderno se opõe diretamente à democracia, isto é, a supremacia da constituição em detrimento da supremacia legislativa. Gustav Zagrebelsky, no entanto, apresentou, em Direito dúctil, uma percepção distorcida do regime norte-americano. Como foi apresentada acima, para o jurista italiano, a concepção de Estado de direito norte-americana é centrada nos direitos e os direitos são não necessariamente constitucionais, mas anteriores a qualquer forma de governo ou de Estado. Ainda que não se possa necessariamente fazer referência a direitos naturais, é possível afirmar que os "direitos" são necessariamente direitos pré-estatais (ou melhor, independentes do Estado instituí-los ou reconhecê-los).

Gustav Zagrebelsky se preocupou com um problema tipicamente europeu[3]. Entenda-se talvez o europeu como não francês, ou, particularmente, como alemão. Forte movimento, no século XX, pretendia abandonar a concepção francesa, isto é, de Estado de direito centrado na lei, e se aproximar da concepção centrada em direitos. Um fator decisivo para a mudança de tradição foi a experiência nazista na Alemanha e totalitária em diversos países europeus como na Itália e na Espanha que tinha indiretamente um fundamento democrático: não se pode esquecer que, antes do nazismo, o partido nazista foi o mais votado nas eleições para o parlamento, e que o partido fascista também tinha enorme apelo popular[4], assim como Salazar, em Portugal, também foi conduzido democraticamente ao poder. No entanto, a tradição européia tinha sérias reservas e desconfianças a pretensões metafísicas ou jusracionalistas, idéias como a de razão universal ou de direitos inatos não eram bem recebidos. Também não se deve esquecer que a doutrina nazista era, em certa medida, uma doutrina jusnaturalista (ainda que não fosse liberal). A experiência constitucional européia teria, assim, segundo Zagrebelsky, solucionado o impasse entre direitos e lei, entre juízes e legisladores, entre liberdade e democracia, ao positivar com status constitucional os direitos individuais fundamentais e ao instituir um órgão especial, geralmente, denominado de tribunal constitucional[5].

Zagrebelsky considerou o modelo europeu (alemão, italiano, espanhol) uma mediação satisfatória entre os modelos francês e norte-americano[6]. É uma concepção centrada em direitos, mas apenas considera direitos aqueles positivados na Constituição, que é um documento normativo estável e resultado de um consenso mais amplo na sociedade. É uma concepção centrada na lei porque a constituição é norma de direito positivo.

O modelo europeu também oferece uma outra resposta que Gustav Zagrebelsky considerou superior à resposta francesa e à resposta norte-americana para o dilema. O conflito entre o poder judiciário e o poder legislativo é evitado quando um novo órgão, o tribunal constitucional, passaria a controlar os excessos do órgão legislativo. No entanto, o tribunal constitucional não teria natureza judiciária e por isso não causaria estranheza ao controlar os atos do legislativo. Zagrebelsky deixa externar uma comparação entre a jurisdição constitucional (jurisdição do tribunal constitucional nos moldes europeus) e a jurisdição administrativa, seria algo como uma justiça própria do legislativo, uma justiça especial, preparada para considerar as peculiaridades da decisão legislativa.

O controle de constitucionalidade reservado a órgãos ad hoc separados da jurisdição ordinária [...] está destinado a atender às exigências da lei e do legislador junto às dos titulares dos direitos constitucionais. [...] A este respeito se tem falado – diferentemente do sistema americano – do privilégio do legislador, uma expressão que indica, sobretudo, que o legislador tem seu próprio juiz, que atua através de procedimentos particulares e está formado por pessoal não exclusivamente judicial, capacitados para ter devidamente em conta, junto as exigências dos direitos, as exigências propriamente políticas expressadas na lei. [...] Assim como então se quis um juiz da administração, agora se quer um juiz do legislador[7].

Bruce Ackerman, no entanto, respondeu ao dilema de outra forma. Primeiro, como já se tratou acima, considerou que o monismo e o fundamentalismo (isto é, a concepção centrada na leis e a concepção centrada nos direitos) se manifestam respectivamente na Inglaterra e na Alemanha. Esta divergência é crucial para comparar os dois autores. Embora não tenha maior discordância sobre os representantes do monismo, Inglaterra e França, há uma discordância constrangedora entre o representante do fundamentalismo (concepção centrada nos direitos). O europeu (Zagrebelsky) indica os Estados Unidos e o norte-americano (Ackerman) indica a Alemanha (o modelo europeu). Curiosamente, a alternativa ao dilema para Zagrebelsky é a jurisdição constitucional alemã e a alternativa ao dilema para Ackerman é o constitucionalismo norte-americano.

Além da insatisfação com o modelo alheio, Ackerman e Zagrebelsky apontam para soluções diferentes. O aspecto que se destaca é a percepção distorcida que cada um tem sobre o modelo do outro, a ponto de ambos considerarem o diferente como fundamentalista (concepção centrada em direitos).

Gustav Zagrebelsky considerou o constitucionalismo europeu com a marca original distintiva, que consiste em uma constituição rígida consagradora de direitos fundamentais e de um tribunal constitucional com natureza não-judiciária.

Bruce Ackerman, por sua vez, parte de uma premissa monista: a crença inabalável na legitimidade da soberania popular, isto é, na legitimidade democrática. No entanto, Ackerman não confunde os representantes do povo com o próprio povo[8]. Diferentemente da tradição européia (especialmente francesa), para quem o parlamento ou a assembléia eleitos pelo povo eram concebidos como o próprio povo agindo, a tradição norte-americana geralmente desconfiava de tal associação, assim, os representantes do povo são legitimidados pelo povo para agir, mas não são o povo, são apenas seus delegatários[9]. Também não está presente a crença de que os representantes do povo decidem como se fossem o povo decidindo, é nítida a percepção dos norte-americanos que os representantes do povo constituem apenas o governo que age por sua própria conta, o povo os controla, destituindo os governantes pelas eleições, não se pode associar necessariamente a decisão do governo com a decisão do povo, pelo simples fato dos representantes terem sido eleitos. Parece que a crítica de Rousseau aos ingleses produziu efeito. Assim, Ackerman distinguiu duas maneiras do povo se manifestar: uma genuína e outra delegada. O povo soberano decide apenas em momentos extraordinários, em momentos que Ackerman denominou de "momentos constitucionais".

Assim, a democracia de Bruce Ackerman é o governo do povo, mas o povo se manifesta apenas nos momentos constitucionais[10]. Quando os representantes do povo decidem, devem se ater aos limites impostos pela vontade genuína do povo nos momentos constitucionais[11].

Na visão dualista da democracia as decisões tomadas pelo povo não são moeda corrente. Elas ocorrem raramente e só em momentos especiais que para denominá-los de alguma maneira podemos chamar de 'momentos constitucionais'. Estes 'momentos constitucionais' estão caracterizados por distintas circunstâncias; primeiro, pelo fato de que um extraordinário número de cidadãos está seguro da seriedade do assunto que se discute, seriedade muito maior que a seriedade que se outorga às decisões políticas normais; segundo, pelo fato de que todos os cidadãos têm a oportunidade de se organizar para expressar sua forma de ver o problema que se discute; e, terceiro, pelo fato que existe uma maioria partidária de uma determinada forma de solucionar o problema em questão[12].

Ackerman pretendeu também eliminar, ou melhor, reduzir os problemas decorrentes com a fragilidade teórica do princípio da maioria na teoria democrática. O jurista norte-americano alertava que os momentos constitucionais são extraordinários porque exigem um conjunto de condições difíceis de serem executadas (mas não impossíveis), a principal condição é que o resultado do momento constitucional seja uma decisão com ampla aceitação consciente da comunidade.

Com seus argumentos, Bruce Ackerman recusou o fundamentalismo, isto é, uma concepção centrada em direitos não positivados. Mas recusa também o monismo, pois os representantes do povo são limitados pela vontade do povo (isto é, pela constituição).

De acordo com a visão da democracia que tem os dualistas, os representantes do povo não podem se arrogar, pelo fato de ter ganhado uma eleição, a atribuição de anular ou invalidar as decisões tomadas pelo povo em momentos constitucionais[13].

Há outra distinção relevante entre a posição de Zagrebelsky e a posição de Ackerman, quanto aos efeitos de cada doutrina. Na teoria de Zagrebelsky, o tribunal constitucional tem poder ilimitado[14]; enquanto que, na teoria de Ackerman, a Suprema Corte se limita a proteger a vontade do povo, isto é, a proteger a constituição contra o ativismo legislativo, como também contra o seu próprio ativismo[15].

A democracia dualista de Bruce Ackerman, portanto, pretende, assim como Zagrebelsky, resolver o dilema com a positivação (constitucionalização) dos direitos acima da lei. Distanciam-se quando Ackerman considera a constitucionalização um evento extraordinário e exclusivamente popular, enquanto que Zagrebelsky admite que o tribunal constitucional atue com certa independência para executar os direitos previstos na constituição. Não só isso, a teoria de Zagrebelsky não inclui uma teoria forte sobre um poder constituinte forte, como é o caso da teoria de Ackerman. Em todo caso, pesa contra Ackerman a falta de engenhosidade, ao considerar que a Suprema Corte adotará uma posição não-ativista ou auto-restritiva por opção própria. Em nenhum momento considerou a possibilidade da Suprema Corte agir nominalmente em defesa da constituição (isto é, da vontade do povo) quando está de fato agindo segundo as convicções ou os interesses dos próprios juízes da Corte. Nesse momento, parece que Ackerman não considerou um dado decisivo que é o reconhecimento de uma nova hermenêutica constitucional bem mais livre que a hermenêutica tradicional prescrevia.

O tribunal constitucional e o debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt

O dilema entre liberdade e democracia, que é similar ao dilema entre individualismo e coletivismo, reproduz-se na doutrina jurídica de várias maneiras: na teoria do Estado de direito, como concepção centrada nos direitos em contraste com a concepção centrada na lei; e, na teoria moderna da democracia, como democracia fundamentalista em contraste com a democracia monista. O mesmo dilema também se revela como oposição entre a supremacia judicial e a supremacia legislativa, considerando-se o poder judiciário como o melhor instrumento de proteção dos direitos contra a indevida interferência da lei (do legislador); por outro lado, a supremacia judiciária carece de um fundamento de legitimação tão convincente como a legitimação democrática da supremacia legislativa.

Gustav Zagrebelsky e Bruce Ackerman apontam para uma solução intermediária ao dilema. Em ambas as teorias destacam uma nova figura mediadora entre direitos e lei: a constituição, isto é, uma nova figura, mediadora entre o judiciário e o legislador: o poder constituinte. Destaca-se, ainda, uma nova figura, mediadora entre o judiciário e o legislador: o tribunal constitucional.

As soluções apresentadas por Zagrebelsky e por Ackerman foram antecedidas por um famoso embate aparentemente superado, mas que tem toda valia para compreender do debate contemporâneo. Na primeira metade do século XX, Hans Kelsen propôs a adoção de um sistema de jurisdição constitucional para a Alemanha, o controle da constitucionalidade das leis deveria ser feito por um órgão novo: o tribunal constitucional[16]. Em oposição a Kelsen, Carl Schmitt asseverava que o controle de constitucionalidade, tendo a natureza política e não jurídica, deveria ser exercido pelo presidente da república[17].

É inegável que a idéia de jurisdição constitucional é inspirada no judicial review norte-americano, no entanto, a fonte próxima da proposta kelseniana é a experiência do constitucionalismo austríaco na década de 1920.

Não se deve esquecer que até o século XX as constituições européias desconheciam qualquer forma de jurisdição constitucional; considerava-se, na verdade, o judicial review como um instrumento anômalo, incompatível com o sistema constitucional de tradição européia. Causava estranheza aos europeus que os assuntos constitucionais fossem tratados como temas estritamente jurídicos e não como temas políticos.

É neste contexto que Carl Schmitt manteve a contenda com Kelsen sobre quem deveria ser o guardião, o defensor, da constituição.

Hans Kelsen gastou boa parte dos seus argumentos para demonstrar a impropriedade do sistema norte-americano e para demonstrar que a atividade da jurisdição constitucional é necessariamente de natureza legislativa, de legislação negativa. Portanto, propôs a criação de um órgão especial, de natureza híbrida ou mista, o tribunal constitucional.

Carl Schmitt, por sua vez, não compreende a constituição como um texto normativo, exclusivamente, mas como uma decisão política fundamental. Destacou, então, o papel do presidente da república como aquele que poderia ter as condições necessárias para proteger a constituição. Bem no sentido hobbesiano, o defensor da constituição precisa ter antes de tudo as condições materiais para exercer esta função. Schmitt demonstrou as fraquezas da democracia liberal, particularmente do regime parlamentar, e defendeu a participação do chefe do poder executivo com uma função de proteção da constituição, isto é, de proteção do povo.

As duas posições contrastam com a tradição francesa, para quem só o povo ou a nação pode se defender, ou seja, a soberania permanece intacta na assembléia dos representantes do povo. Também contrasta com a doutrina inglesa da soberania do parlamento.

O resultado é conhecido, a maior parte das democracias constitucionais da Europa ocidental, no pós-guerra, adotou a posição de Kelsen. Saídos de regimes autoritários, os países europeus adotaram um tribunal constitucional. É o caso da Alemanha, da Itália, da Espanha e de Portugal; nos dois últimos, apenas na década de 1970, quando os regimes franquista e salazarista foram derrubados.

Em matéria constitucional, a experiência norte-americana tem sido vanguardista em relação à Europa. Cem anos antes do debate Kelsen-Schmitt, Marshall já proclamava o judicial review. Nas décadas de 1970 e de 1980, principalmente, o debate norte-americano versava sobre o ativismo judicial, a Suprema Corte deixava sua tarefa já reconhecida por Kelsen de legislador negativo e atuava mesmo como genuíno legislador (positivo); não apenas obstruía a ação excessiva (ilegítima) do legislador, como também atualizava e especificava o sentido das disposições constitucionais. O ativismo do tribunal constitucional só seria objeto de debate na Europa na última década.

Interpretativistas e não-interpretativistas no judicial review

Em certa medida, o debate norte-americano é provocado pela atuação marcante da Corte Warren na defesa dos direitos civis, na década de 1950. A decisão mais conhecida é a do caso Brown versus Comitê de Educação de Topeka (347 U.S. 483). Nela, o juiz Warren, presidente da Suprema Corte, usando uma retórica ainda nos moldes da hermenêutica tradicional (interpretativista) concluiu com um enunciado geral: "anunciamos agora que tal separação é uma negativa da igual proteção das leis"[18]. Warren decidia modificando a posição firmada pela própria Corte em outro caso, Plessy versus Ferguson[19] (163 U.S. 537), de 1896, estabelecendo uma nova interpretação da constituição e proibindo a aplicação da doutrina "iguais mais separados" com base na 14ª Emenda[20]. O caso doutrinariamente mais polêmico, no entanto, foi Roe versus Wade, em 1973, encerrando a fase ativista da Suprema Corte[21].

A doutrina divide as posições sobre o tema em dois grupos: interpretativistas e não-interpretativistas (ou literalistas e não-literalistas). Considera-se o interpretativista aquele que não admite o ativismo judicial e considera que a Suprema Corte deve se ater a interpretação literal da constituição. Considera-se não-interpretativista aquele que encontra o sentido da norma constitucional além do mero texto da constituição[22]. É possível também cruzar outros critérios, como o contraste entre valores substantivo e valores objetivos e como o contraste entre ativismo e auto-restrição da Corte. Geralmente todos os critérios são aplicados simultaneamente, o que é fonte de mais ambigüidade.

Uma observação atenta, no entanto, exigiria um reparo nesta classificação binária – interpretativismo e não-interpretativismo. O originalismo precisa ser distinguido do textualismo; assim, um textualismo radical parte da premissa de que não cabe interpretação criativa a partir do texto constitucional, aproximaria da hermenêutica tradicional, similar à hermenêutica da escola da exegese francesa; tal posição, no entanto, nunca foi seriamente defendia na comunidade acadêmica; o originalismo, por sua vez, considera que a interpretação válida e imutável é aquela consagradora dos valores admitidos no momento da fundação da república, isto é, na convenção constituinte da Filadélfia em 1787 (e/ou nas emendas que passaram a ter o status constitucional)[23].

O não-interpretativismo também pode ter duas abordagens. Uma genuína e outra indireta. O não-interpretativismo genuíno considera que a Suprema Corte é a guardiã do sentido da constituição, devendo atualizar o seu sentido; significa desde uma posição radical (a possibilidade de adotar novos valores), como a posição moderada (que é agir com eqüidade aplicando os valores constitucionais ao caso concreto adaptado). O não-interpretativismo indireto não admite o ativismo judicial, mas não pode ser classificado como interpretativista porque não admite a intervenção da Suprema Corte contra a atividade dos órgãos políticos, como o do legislador; assim, o povo é o legítimo intérprete da constituição e o povo age pelos seus representantes eleitos.

Sob certo sentido, o que se denominou de não-interpretativista indireto é também originalista. É não-interpretativista porque defende que a interpretação da constituição pode ser atualizada, mas é originalista porque defende que a Suprema Corte deve ter uma postura auto-restritiva, isto é, deve interpretar a constituição com o sentido original e não criativo.

Assim, a dicotomia interpretativistas e não-interpretativistas parece ser insuficiente para descrever o debate, merecendo, pelo menos, a distinção entre: textualistas, originalistas, ativistas judiciais e ativistas legislativos. Bruce Ackerman acrescentaria ainda uma idéia de ativismo constitucional (ou ativismo popular), o que de certo modo parece ser uma nova versão do originalismo.

Desta maneira, podemos fazer comparações curiosas. Identificam-se semelhanças entre o fundamento originalista e o fundamento do ativismo judicial (isto é, argumento interpretativista e argumento não-interpretativista), ambas as posições asseguram a proteção dos direitos contra a ação ou omissão do legislador ordinário. E o que se denominou de ativista legislativo se aproxima do monismo (e da concepção centrada na lei). O dualismo de Ackerman trata-se de um caso a parte.

Ainda que seja comum associar os originalistas aos conservadores (ou ao partido republicano) e associar os ativistas aos liberais[24] (ou ao partido democrata), tal associação é impertinente[25]. Assim, um originalista como Bork defende que a Suprema Corte defenda os valores da constituição inclusive contra intromissões indevidas do legislador. Mas um originalista moderado como Ely[26] considera que o legítimo intérprete dos valores da constituição não é o poder judiciário, mas os poderes exercidos por representantes do povo, isto é, o congresso e o presidente. Assim, talvez merecesse a distinção didática entre textualista e originalista. O primeiro enfatizando o texto sem valores explícitos e o segundo enfatizando os valores dos fundadores da república que são exteriorizados pelo texto. Do outro lado, os ativistas consideram que a Suprema Corte deve defender os valores da constituição, mas os valores atualizados dela, isto é, os valores compartilhados pela sociedade norte-americana atual e não a sociedade da época dos fundadores da república. Isso implica o reconhecimento de "direitos morais", para usar uma expressão corrente na obra de Dworkin, que valem contra o direito estatal, contra as leis, por exemplo. Pelo ativismo, a Suprema Corte não apenas age impedindo a legislação inconstitucional como também prescreve o sentido da constituição atualizada. A distinção entre o originalismo e o ativismo, portanto, é que o originalismo identifica como um dos valores fundamentais que a interferência estatal é, por princípio, abusiva, seja ela pelo legislador, seja pelo judiciário. Para o ativismo, a interferência do judiciário, desde que seja baseado nos princípios é boa. Para o ativismo legislativo, de Ely, a interferência do judiciário não deve ser superior a legitimidade do legislativo que é o próprio povo se governando.

Sem maior esforço, é possível associar o ativismo judicial ao fundamentalismo (concepção centrada nos direitos) e associar o ativismo legislativo ao monismo democrático. O originalismo não se enquadra bem nesta tipologia, principalmente porque as tipologias são posteriores ao debate doutrinário norte-americano e procuram mesmo retratar aquela discussão; neste caso, o originalismo foi omitido; provavelmente porque é a menos consistente das três posições ou porque o originalismo no início usava um argumento semelhante ao do ativismo e depois passou a usar um argumento semelhante ao do ativismo legislativo.

O originalismo precisa necessariamente confiar na premissa de que a interpretação judicial pode ser neutra e que o texto tem um sentido claro sempre, inclusive o texto constitucional[27], ou então que os fundadores da república tinham muito claramente quais os valores fundamentais da nova república e que também são claramente compreendidos; por fim, parte da premissa que por mais que se perceba mudanças tecnológicas, sociais, econômicas culturais etc. a sociedade norte-americana deve continuar regida pelos mesmos valores da fundação. Gradativamente, o argumento originalista centrado nos direitos (direitos conservadores) é reforçado por um argumento democrático para restringir o papel da Suprema Corte. A contradição entre os dois argumentos é que torna o originalismo uma doutrina periférica.

Embalados pela bem sucedida corte Warren, os ativistas ressaltam a importância da Suprema Corte para proteger e para promover os direitos. Vale lembrar que um aspecto da discórdia entre a percepção de Zagrebelsky e a percepção de Ackerman sobre a atuação judicial nos Estados Unidos é sobre se a Corte baseia suas decisões em direitos constitucionais ou em direitos pré-estatais (extra-estatais). O ativismo não considera que existam direitos fora da constituição, apenas considera que a constituição é um organismo vivo e que muda com a sociedade ainda que o texto originário permaneça inalterado, é aquilo que a própria doutrina alemã reconhece como "mutação constitucional". Assim, quando a Suprema Corte decide fundamentada nos direitos (e nos princípios) ela julga com base no sentido atualizado da constituição.

O ativismo legislativo, no entanto, como doutrina monista, isto é, democrática, desconfia que a Suprema Corte[28] possa agir com objetividade na interpretação constitucional[29]. Considera que a natureza do direito constitucional, ambígua e aberta, permitiria diversas interpretações possíveis, todas válidas, o que tornaria a vontade da Suprema Corte a própria constituição e não os sentimentos e valores do povo. Para o ativismo legislativo é o povo diretamente ou por seus representantes (que podem ser controlados) que determinará o sentido da constituição. Como o povo não age diretamente, mas por seus representantes eleições, a única função da Corte é proteger o procedimento democrático, isto é, garantir que as decisões do governo sejam legítimas porque os representantes foram escolhidos a partir de eleições limpas e livres[30].

Para evitar outros problemas com este tipo de classificação, podem-se destacar três teorias expressivamente influentes: a teoria de Ronald Dworkin, a teoria de John Hart Ely e a teoria de Bruce Ackerman. Todas relacionadas ao debate norte-americano. Outras teorias expressivas foram propositalmente excluídas, ou porque se tornaram argumento periférico no debate ou porque seus aspectos relevantes podem ser abordados indiretamente dentro de uma das três teorias escolhidas[31]. Das três, a doutrina Ackerman parece ser descritivamente a mais fiel ao sistema norte-americano e as outras duas parecem ser prescritivamente bem fundamentadas, a de Dworkin com melhores argumentos que a de Ely.

Teoria de John Hart Ely e a crítica de Ronald Dworkin

John Hart Ely[32] é o principal autor do monismo; ainda que explique sua teoria em um contexto diferente daquele formulado por Zagrebelsky e por Ackerman. Ely propôs uma alternativa ao conflito entre interpretativistas e não-interpretativistas[33] na doutrina norte-americana.

O próprio Ely apresentou uma síntese didática de sua teoria:

Em uma democracia representativa, as determinações valorativas devem ser adotadas por nossos representantes eleitos e se, de fato, a maior parte de nós não está de acordo, podemos votar para removê-los de seus cargos. O mau funcionamento se dá quando o processo não inspira confiança, quando 1) quem detém o poder bloqueia os canais de mudança política ou se assegura de permanecer no poder e excluir os demais, ou 2) quando ainda que a ninguém se negue na realidade voz ou voto, os representantes comprometidos com uma maioria efetiva sistematicamente colocam em desvantagem a alguma minoria, por simples hostilidade, ou por negar-se prejudicialmente a reconhecer uma comunidade de interesses e, ao faze-lo, negam a minoria a proteção subministrada por um sistema representativo a outros grupos[34].

O resumo que Dworkin fez da obra de Ely é mais didático, ainda que Dworkin discorde das três últimas características:

(1) A revisão judicial deve ter em vista o processo da legislação, não o resultado isolado desse processo. (2) Ela deve avaliar esse processo segundo o padrão da democracia. (3) A revisão baseada no processo, portanto, é compatível com a democracia, ao passo que a revisão baseada na substância, que tem em vista os resultados, é antagônica a ela. (4) O Tribunal, portanto, erra quando cita um valor substantivo putativamente fundamental para justificar a revogação de uma decisão legislativa. [...] Penso que a primeira proposição é vigorosa e correta. Mas as outras três são erradas [...][35].

John Hart Ely demonstrou que o poder constituinte é o exercício da soberania popular e que não há argumento razoável que proteja a vontade do povo passado contra a vontade do povo presente. Assim, o povo se manifesta pelos seus representantes e as tentativas da Suprema Corte de obstruir a ação do legislativo sob o argumento de que desrespeita a constituição é uma contradição, pois apenas o povo é o guardião de sua vontade e de seus valores; se os governantes desrespeitarem os valores do povo, cabe ao próprio povo, nas eleições seguintes, eleger novos representantes e corrigir a falha. Também não cabe à Suprema Corte decidir com a interpretação livre que promove os direitos constitucionais, ou que atualiza livremente os direitos constitucionais. Cabe apenas ao povo tal atualização, isto é, aos representantes do povo. Ely, no entanto, considerou imprescindível o papel da Suprema Corte, mas um papel seletivamente auto-restritivo. Ely partiu da premissa de que o valor fundamental do sistema político e jurídico norte-americano é a democracia (democracia representativa) e que as decisões dos representantes são legítimas porque tais representantes foram devidamente eleitos segundo a vontade popular vê que há instrumentos para que o povo insatisfeito com o desempenho dos seus governantes os destitua do seu posto no governo. Com esta premissa, Ely concluiu que não é possível deixar sob a responsabilidade dos representantes do povo a proteção contra a livre escolha destes mesmos representantes. Significa dizer que os representantes eleitos não podem assegurar a legitimidade do procedimento que os elegeu. Caberá à Suprema Corte guardar a lisura das eleições. Caberá, portanto, à Corte a proteção do primeiro valor da sociedade democrática – a democracia – que é também o único valor que não é guardado pelo próprio governo popular.

John Hart Ely partiu de uma premissa que ele não demonstra: a legitimidade da democracia representativa[36]. Perceba-se um aspecto curioso, que Ely não considerou, como a doutrina democrática européia, a vontade dos representantes do povo como a vontade do povo; parece claro que Ely manteve a distinção tipicamente norte-americana entre povo e governo; no entanto, considerou que, na democracia representativa, o povo, nas eleições, pode controlar os atos do governo. Democracia, portanto, é controle e não expressão da vontade geral.

Assim, John Hart Ely desconfia da Suprema Corte exatamente porque não há instrumentos de controle popular sobre suas decisões.

No entanto, o governo (isto é, os representantes do povo) pode tentar burlar ou impedir o controle popular. Como o controle popular não é permanente, mas se expressa, sobretudo, em eleições periódicas, o povo fica parcialmente desprotegido nestes interregnos. Seria uma insensatez deixar que o governo controlasse a si mesmo; assim, naquilo que não é possível o controle popular, faz-se necessário a participação de um terceiro ator, que não seja governo, mas que tenha atuação permanente e não periódica, como o povo nas eleições. Aproveitando a experiência norte-americana, Ely considera a Suprema Corte um órgão adequado para cumprir a tarefa[37]. Alerte-se, no entanto, que a Suprema Corte apenas guardará o procedimento democrático, nunca poderá decidir sobre as questões de fundo, como se fosse o povo.

Entretanto, John Hart Ely é obrigado a reconhecer, como corolário da última conclusão, que a Suprema Corte poderá decidir questões de fundo desde que produza efeitos sobre o procedimento democrático, isto é, assegurar eleições limpas e justas. É neste sentido, por exemplo, que Ely aceita a decisão no Brown versus Comitê de Educação, mas rejeita a decisão no Roe versus Wade. Considera que assegurar uma educação de igual qualidade é uma condição para cidadãos iguais e, portanto, uma condição para ter eleições justas. Outra questão de fundo que se reproduz também como uma condição do procedimento democrático é a proteção da minoria, não porque a minoria tenha algum direito próprio, mas porque a proteção das minorias significa assegurar outra característica da democracia que é a potencial alternância no poder[38].

Para John Hart Ely, a chave da questão é mediar a tensão entre o princípio da maioria e o princípio da proteção da minoria; a idéia de mediar esta tensão é a do "sistema representativo", tal como os norte-americanos a concebem:

O 'Sistema Representativo' surgiu como solução para o eterno conflito entre 'Governantes' e 'Governados': os governantes passaram a ser extraídos do seio dos governados, não deixam de ficar submetidos às mesmas Leis (que aprovam) e, depois de um período, retornam à condição anterior (de governados) [...]. Isso só não resolveu a questão dos interesses das Minorias. Embora houvesse a intenção de dar tratamento igual a todos, desde o início, não existiam os mecanismos. No fundo, achava-se que o 'Povo' era uma unidade homogênea em seus interesses... E mesmo se não fosse, as políticas 'redistributivas' acabariam por resolver tudo, porque a heterogeneidade seria só de riqueza, de bens[39].

Diante da dificuldade de classificar John Hart Ely como interpretativista ou como não-interpretativista, geralmente sua doutrina é apresentada como uma tentativa de conciliação ou de superação do conflito. Ely pretendeu resolver um confronto tipicamente norte-americano sobre o ativismo judicial, apresentando uma alternativa às duas posições: que os juízes (particularmente a Suprema Corte) podem interpretar livremente a constituição e, portanto, "atualizá-la" ou que a Suprema Corte não pode interpretar a constituição e deve aplicá-la tal como foi concebida pelos fundadores da república. Perceba-se que a segunda posição, que Ely denomina de "textualismo", não é defensora de uma democracia parlamentar. É, sim, defensora de um conservadorismo constitucional, isto é, de que os valores fundamentais estão na constituição e não no legislativo ou no judiciário. A alternativa de Ely é dar ao órgão do legislativo, por ser um órgão democrático, a faculdade de atualizar a constituição, negando ao judiciário tal prerrogativa.

A teoria de Ely abre uma alternativa bastante viável para solucionar o dilema entre a supremacia dos juízes e a supremacia do legislador. No entanto, é cheio de imprecisões. Ronald Dworkin mesmo, talvez o principal expoente do ativismo judicial, faz uma impiedosa crítica.

John Hart Ely, por exemplo, não explica sua premissa: a democracia como valor fundamental. Ely também não explica como tornar sua doutrina prescritiva em doutrina real, pois no final das contas, quem assegurará que a Suprema Corte não exercerá suas competências, além da sua esfera legítima de atuação? Como lidar, por exemplo, com uma decisão da Suprema Corte que estabeleça como condição para a democracia que cada eleitor receba a renda mensal de mil reais e que obrigue o governo ou os empregadores a adotar este salário mínimo? Ou, também, em sentido inverso, como lidar com uma decisão do congresso (representantes do povo) que restrinja direitos políticos de grupos minoritários, como norte-americanos de origem árabe, palestina ou persa? Ou, ainda, como lidar com uma decisão do congresso ou da Suprema Corte que restrinja a liberdade de expressão de grupos políticos assumidamente antidemocráticos e antiliberais? Outra deficiência na teoria de Ely é que, ao conceder à Suprema Corte o poder superior de proteger a democracia, inclusive tomando decisões substantivas (como a do caso Brown versus Comitê de Educação), o que impediria a Corte de abusar de suas atribuições? E se for dado ao governo (aos representantes do povo) o poder de controlar os excessos da Suprema Corte, quem controlará o governo? Ou seja, Ely não enfrenta a raiz da questão e não responde a questão pragmática mais importante: quem é o defensor da Constituição?

A crítica que Ronald Dworkin fez à doutrina de Ely é bastante interessante, pois se diz adepto da doutrina quanto aos fundamentos, quanto aos objetivos, mas discorda veementemente quanto aos meios; considera ainda que o próprio Ely não aplica os meios adequados; portanto, que a doutrina do próprio Dworkin é que é a devida correção na obra de Ely. Assim, Dworkin vai muito além da crítica e considera que os problemas na teoria de Ely não são de insuficiência, mas de contradição interna.

Pode-se verificar, nas palavras do próprio Dworkin, que ele considera que sua teoria dos direitos enquanto trunfos (sobre a vontade da maioria) é instrumento mais eficiente e adequado para proteger os cidadãos e as minorias do que qualquer outra estratégia apresentada superficialmente por Ely: "afirmo que o argumento de Ely, bem compreendido, é na verdade esse argumento e não o argumento da democracia que se encontra no título e na superfície de seu livro"[40].

Ronald Dworkin considerou a premissa de Ely não devidamente esclarecida e, por isso, imprecisa: "Ely insiste em que o papel adequado do Supremo Tribunal é policiar o processo da democracia, não rever as decisões substantivas tomadas por meio desses processos. Isso poderia ser persuasivo se a democracia fosse um conceito político preciso, de modo que não pudesse haver lugar para discordância quanto a ser ou não democrático um processo"[41]. É isto que dá margem à deficiência que já se identificou sobre quem afinal controla quem? Nesse sentido, Dworkin considera que

A única versão aceitável da própria teoria de 'processo' faz o processo correto – o processo que o Tribunal deve proteger – depende de se decidir que direitos as pessoas têm ou não. Assim, faço objeção à caracterização que Ely oferece de sua própria teoria[42].

O ativismo judicial na teoria de Ronald Dworkin

Ronald Dworkin, de certo modo, reconheceu os fundamentos e os objetivos da doutrina de Ely. No entanto, considerou que para assegurar o valor democrático exige-se muito mais do que prescreveu Ely, exige mais ampla e mais densa de proteção dos direitos dos cidadãos que exercem a democracia[43]. Assim, Dworkin apresentou seus direitos morais como direitos democráticos ou como direitos pró-democracia, e não como direitos contra a democracia.

No entanto, como conseqüência do fundamentalismo (concepção centrada nos direitos), o reconhecimento de direitos morais preferenciais exige que possam ser oposto contra o governo (contra os representantes do povo, ou melhor, contra a maioria). Para Dworkin, a atribuição que a Suprema Corte tem de proteger os direitos não se dá apenas por ser um órgão não eletivo (em parte é este a justificativa de Ely)[44], mas Dworkin considera que os órgãos políticos de maneira geral (legislativo, executivo etc.) não conseguem desempenhar adequadamente essa função; o uso de procedimentos judiciais habilita a Suprema Corte como órgão judicial, a exercer a função de limitadora do poder[45].

Para tanto, Ronald Dwokin rejeita o argumento formulado por Alexander Bickel (e recepcionado por Ely) de que os direitos morais podem ser protegidos pelos órgãos de representação popular[46]. Dwokin reproduz a posição de Bickel:

Apresentei a teoria de Bickel como exemplo de uma forma de argumento a partir da democracia, ou seja, o argumento de que, uma vez que os homens discordam quanto aos direitos, é mais seguro deixar a decisão final sobre direitos a cargo do processo político. Mais seguro no sentido de que os resultados provavelmente serão mais bem fundamentados[47].

Ainda sobre o argumento Bickel: "ela sustenta que o processo político orgânico irá assegurar com maior segurança os direitos humanos genuínos, caso seu caminho não seja atravessado pela intrusão artificial e racionalista dos tribunais"[48]. Contra a posição anterior, retruca Dworkin: "mas essa proposição bizarra é apenas uma forma disfarçada da idéia cética de que, na realidade, não existem nenhum direito contra o Estado"[49].

A posição de Ronald Dworkin é clara, os direitos morais[50] são preferenciais aos direitos democráticos (isto é, os direitos da maioria): "um indivíduo tem direito à proteção contra a maioria, mesmo à custa do interesse geral"[51]. Ainda no mesmo sentido, sobre o sistema norte-americano: "Nosso sistema constitucional baseia-se em uma teoria moral específica, a saber, a de que os homens têm direitos morais contra o Estado"[52].

A atuação da Suprema Corte deve atualizar tais direitos morais, não se restringindo ao que textualmente prescreve a constituição ou à intenção original dos fundadores da república. Esta conclusão, no entanto, é bastante peculiar, pois a Suprema Corte não tem exatamente liberdade para decidir e realizar os valores morais, já que, não sendo órgão político, deve se submeter integralmente ao direito. Como foi descrito na Parte I, Dworkin considera que mesmo nos casos difíceis há apenas uma solução correta para o caso, logo a liberdade hermenêutica do julgador não significa discricionariedade e menos ainda arbítrio (soberania), mas uma vinculação ao direito pré-existente, que é um corolário do Estado de direito. Considerar que a Constituição adota cláusulas abertas (vagas, imprecisas)[53] não significa, para Dworkin, a autorização para qualquer decisão, ou a autorização para várias alternativas possíveis a juízo do julgador, significa que a partir daquelas normas é possível usando técnicas de hermenêutica jurídica encontrar a decisão apropriada para o caso[54]. Trata-se, portanto, da eqüidade de saber aplicar as normas (e os princípios são normas) adequadamente aos casos.

Perceba-se que Dworkin salta de uma teoria descritiva para uma teoria prescritiva sem avisar. O fato de Dworkin considerar que o juiz deve encontrar a única decisão correta, não significa nem que ele é capaz de encontrá-la (como o juiz Hércules), nem que, sendo capaz de encontrá-la, agirá como fiel aplicador do direito pré-existente. O que impede o último julgador de criar direito novo sob o argumento de que está aplicando um direito pré-existente?

A preferência de Ronald Dworkin pela Suprema Corte em detrimento do Congresso é também uma preferência do procedimento judicial (jurídico) em detrimento do procedimento político para a proteção de direitos. Ressalte-se, é claro, que Dworkin não considera o procedimento jurídico para decidir sobre questões políticas, questões de governo, questões de políticas públicas. Para esses assuntos, considera o procedimento democrático o mais adequado.

A crítica que se fez a Ely, mutatis mutandis, também pode ser feita a Dworkin: qual a garantia de que os juízes da Suprema Corte se aterão apenas à participação neutra (estritamente jurídica) nas questões que julgar? Qual o fundamento consistente em que possa se basear um enunciado que considere que os juízes dispõem de qualidades para apreciar adequadamente questões que versam sobre direitos morais[55], em detrimento dos órgãos eletivos?

A resposta de Dworkin é clara, mas não parece satisfatória:

A questão central que está no cerne do debate acadêmico deve ser colocada da seguinte maneira. Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a cargo dos juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade, tanto quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os juízes venham a fazer as escolhas erradas. Todo jurista acha que, em algum momento de sua história, a Suprema Corte errou, às vezes profundamente[56].

Parece mesmo que Dworkin tinha razão quando comparou sua teoria com a de Ely, não são tão diferentes nos fundamentos e nos objetivos, mas apenas quanto aos meios. No entanto, Dworkin, que consegue resolver ou superar alguns problemas e deficiências da doutrina de Ely, também cria outros problemas. Dworkin, que considera ambígua a idéia de democracia de Ely, também não apresenta uma resposta muito melhor, ao formular a idéia de direito como integridade ou de igual consideração e respeito. Mas a principal deficiência na doutrina de Dworkin ainda é explicar satisfatoriamente a prioridade da Suprema Corte sobre o Congresso.

Ronald Dworkin é um liberal (um progressista ou um esquerdista, em algum parâmetro usado no Brasil), confia na Suprema Corte para proteger os direitos contra o Estado, mas, em verdade, não há como evitar que a Suprema Corte tendo os poderes que Dworkin quer que tenha, adote uma postura diferente. Por exemplo, que proteja direitos sociais em detrimento de direitos individuais, que proteja o bem social em detrimento da liberdade individual, que proteja direitos individuais de propriedade em detrimento de outros direitos como o de igual respeito e dignidade. Como muito bem alerta Bruce Ackerman, os fundamentos da doutrina de Dworkin servem para muitos fins[57], sendo que sobre a Suprema Corte não é possível o controle popular.

O soberano na teoria de Bruce Ackerman

Para Bruce Ackerman, Ronald Dworkin é o melhor representante do fundamentalismo nos Estados Unidos e John Hart Ely é o melhor representante do monismo. Ackerman, no entanto, permanece insatisfeito com as duas doutrinas, não apenas no sentido prescritivo, mas também considera que nenhuma descreve adequadamente o sistema constitucional norte-americano. A conclusão de Ackerman é, portanto, ao mesmo tempo descritiva e prescritiva porque considera melhor o sistema adotado nos Estados Unidos.

Pragmaticamente, o debate entre Dworkin e Ely pode ser reduzido ao seguinte: para o primeiro, o impasse é resolvido pela Suprema Corte e, para o segundo, o impasse é resolvido pelo Congresso (deve-se mitigar esta última afirmação sobre a doutrina de Ely). Em outras condições, o debate poderia ser resumido com a preferência pelo principio da liberdade (direitos morais) para o primeiro e a preferência pelo princípio democrático (soberania popular) para o segundo. Este último resumo, no entanto, não apresenta adequadamente o núcleo das duas posições, principalmente porque há forte elemento democrático na doutrina de Dworkin, assim como há forte elemento de proteção aos direitos na doutrina de Ely. Em todo caso, Dworkin reconhece a existência de direitos independentemente do reconhecimento pelo legislador ordinário, enquanto que Ely apenas em determinados casos reconhece direitos independentes do reconhecimento pelo legislador ordinário.

Bruce Ackerman se aproxima da posição interpretativista ou auto-restritiva da Suprema Corte. Considera, tal como os monistas de maneira geral, que a Suprema Corte não tem legitimidade para decidir contra a decisão do povo[58], mesmo quando para proteger direitos morais contra a maioria. No entanto, não considera que o governo (os representantes eleitos pelo povo) seja o povo[59], tampouco considera que o mero controle popular durante as eleições expresse a vontade popular e, mais, não considera que maiorias esporádicas ou apertadas possam ser traduzidas em vontade de todo o povo. Assim, Ackerman se distancia ao mesmo tempo da doutrina de Dworkin e da doutrina de Ely.

Ackerman parte de uma premissa duvidosa: a de que a Constituição, particularmente a Constituição dos Estados Unidos foi ungida pelo povo, ou melhor, por uma maioria consagradora, quase unânime do povo, após um amplo, demorado e profundo debate sobre as suas disposições. No entanto, considerando que a premissa de Ackerman seja válida, o jurista norte-americano considera que somente o povo novamente pode ser intérprete criativo da Constituição; nega, portanto, o ativismo judicial e o ativismo legislativo. Aos representantes do povo cabe governar dentro dos limites impostos pela Constituição (ou seja, pelo povo) e ao poder judiciário, particularmente à Suprema Corte, cabe fiscalizar os outros órgãos para que a Constituição seja cumprida[60], assim, a função da Suprema Corte é de obstruir, de invalidar, as ações em desconformidade com a Constituição, ou melhor, em desconformidade com o sentido original da Constituição.

Quem desejar alterar o sentido da Constituição, assevera Ackerman, deve recorrer ao árduo procedimento de mudança da Constituição, ou seja, um procedimento de emenda constitucional. Alerte-se que o procedimento para reforma constitucional nos Estados Unidos é bem mais rígido que no Brasil, exigindo não apenas a aprovação pelo Congresso, como também a aprovação pela maioria qualificada dos órgãos legislativos estaduais.

Bruce Ackerman pretendeu, assim, superar em favor do povo os dilemas relacionados ao controvertido tema do defensor da constituição:

Assim, diferentemente do monista, ele não terá problemas em apoiar a idéia de que os direitos se sobrepõem às conclusões na política democrática regular. Ele pode fazê-lo, entretanto, sem o auxílio dos princípios não-democráticos proferidos pelos fundamentalistas de direitos. Dessa forma, o dualismo oferece uma reconciliação mais efetiva da democracia e dos direitos daqueles que encontram propriedade nos dois pólos do debate[61].

Quem controla o controlador?

Mais uma vez as teorias prescritivas não enfrentam problemas reais da sua aplicação. Quais os limites ao legislador? Quem os determina? Quais os limites aos juízes, quem os determina?

Não há, na verdade, como optar entre a doutrina prescritiva de Dworkin e a doutrina prescritiva de Ely. Para o primeiro, há uma inabalável confiança na Suprema Corte; para o segundo, há uma confiança relativa no legislativo e uma confiança inabalável no povo (que escolhe os representantes).

John Hart Ely também não considera o caso que é típico do liberalismo e secundário na democracia, que é a legitimidade da maioria determinar os destinos da minoria. O Estado de direito impõem uma limitação material aos excessos da maioria.

Parece que o debate perdeu um pouco do senso em relação à realidade e à origem histórica destas instituições. O republicanismo - e, portanto, a doutrina de Montesquieu e de Madison - é uma doutrina do equilíbrio e da moderação. Assim, não versa como dilema entre liberalismo e democracia, ou entre direitos e lei, ou entre supremacia judicial e supremacia legislativa e muito menos entre originalismo e ativismo. Muitas vezes, o dilema é falso daí sua impossibilidade de superação interna.

Perceba-se que os argumentos democráticos não são genuinamente democráticos. Assim como os argumentos de direitos não são genuinamente protetores dos direitos. O debate contemporâneo esquece que o sistema político não é aplicado por deuses, por isso não pode ser feito para seres perfeitos. O argumento democrático parte da premissa de que os cidadãos participam conscientemente e agem assim quando tomam as decisões, quando elegem governantes e quando fiscalizam e controlam o governante; não é assim que se percebe na realidade. O argumento dos direitos parte da premissa de que os onze (ou nove) juízes são mentes privilegiadas ou são centros de moralidade superior para ponderar sobre o que é justo ou injusto, sobre quais valores são relevantes e quais precisam ser adaptados; não é assim na realidade, seja porque os juízes recebem influência, da mesma forma que outros órgãos de decisão política, como também agem segundo suas convicções tanto quando os órgãos políticos. Ora, se o argumento é que o Supremo Tribunal Federal (ou a Suprema Corte) é legítimo para controlar as ações dos outros, que é um bom argumento da imparcialidade, quem controla as ações do Supremo?; agregado à idéia de que aquele que controla não age apenas negativamente, obstruindo as ações dos outros, mas tem se tornando mais freqüente a idéia de que age prescritivamente determinando como os outros órgãos devem agir[62].



[1] Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 222.

[2] Cf. John Marshall. Decisões constitucionais de Marshall.

[3] "Aparte da França, que neste ponto segue a si mesma, o controle de constitucionalidade das leis na Europa está organizado para garantir um equilíbrio entre as exigências do legislador e as exigências dos direitos". Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 62.

[4] Nas eleições legislativas alemãs de 1932, os nazistas (Partido Nacional-Socialista) receberam 32% dos votos. Nas eleições presidenciais do mesmo ano, Adolf Hitler recebeu 30,1% e 36,8% dos votos, respectivamente no primeiro e no segundo turno (perdendo para Hidenburg). Cf. Lionel Richard. República de Weimar, pp. 271 e 277.

[5] O constitucionalismo alemão frente ao pós-guerra: "A solução ao problema consistiu na constitucionalização dos direitos: uma solução que se aparta tanto da tradição estatalista do Estado de direito do século XIX, como das distintas tradições que se compreendem sob o nome de jusnaturalismo, não obstante apresentar aspectos de ambos". Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 68.

[6] A ambivalência da concepção constitucional européia dos direitos: "A atual concepção constitucional européia dos direitos se situa no meio de ambas [as concepções francesa e americana de direitos] [...] Tanto a lei como os direitos tem sua própria dignidade constitucional. Rechaçando uma fundamentação jusnaturalista dos direitos [...], no direito atual estes adquirem valor jurídico positivo só com a Constituição, que institui também o poder legislativo. [...] Naturalmente, em caso de conflito prevalecem os direitos". Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, pp. 58-9.

[7] Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 62.

[8] "O dualismo constitucional é uma concepção que, por sobre todas as coisas, intenta distinguir entre duas classes distintas de decisões políticas as quais se adjudica distinta legitimidade; primeiro, decisões tomadas pelo povo mesmo; segundo, decisões tomadas pelo governo". Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 16.

[9] "Nas concepções européias, o poder legislativo sempre é visto como uma força originária que emana diretamente do soberano [...], para a concepção americana, a legislação [...] é concebida como poder derivado, isto é, delegado". Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 55.

[10] "As decisões tomadas pelo povo raramente ocorrem e estão sujeitas a condições constitucionais especiais. Antes de conquistar a autoridade para exercer a lei suprema em nome do povo, os partidários de um movimento político devem, primeiramente, convencer um número extraordinário de cidadãos comprometidos a conduzir sua iniciativa proposta com seriedade demonstrando sua discordância política; em segundo lugar, devem permitir à oposição uma oportunidade justa de organizar suas forças; em terceiro lugar, devem convencer a maioria dos cidadãos simpatizantes a apoiar sua iniciativa, enquanto o mérito é discutido repetidamente nos fóruns estabelecidos para a criação da lei. É somente dessa forma que um movimento político obtém a legitimidade plena, reconhecida pela Constituição dualista, a partir das decisões tomadas pelo povo". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 7.

[11] "Acima de tudo, a Constituição dualista busca distinguir duas decisões diferentes que podem ser tomadas em uma democracia. A primeira é uma decisão tomada pelo povo estadunidense e a segunda pelo governo". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 7.

[12] Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 16. "Por oposição às decisões do povo, as decisões do governo ocorrem diariamente. Podemos chamar os momentos em que o governo e não o povo toma decisões 'momentos correntes'. O mais característico destes momentos correntes é que neles não existe nem o debate nem a mobilização popular. O eleitorado confia ao governo a gestão dos negócios públicos e, o governo, legitimado por este mandato, adota as decisões que crê mais convenientes. É importante destacar que a falta de debate e participação popular não vicia necessariamente a legitimidade das decisões do governo se certas condições institucionais são satisfeitas". Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 16-7.

[13] Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 17. Sobre o governo: "Eles não podem alegar que uma vitória eleitoral regular seja capaz de lhes conceder o poder de aprovar uma lei que vise a subverter as garantias alcançadas pelo povo em julgamentos anteriores". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 7.

[14] Sobre os limites do controle de constitucionalidade das leis: "Se dá aqui uma situação paradoxal: na Europa [...] não existe cláusula de exceção frente à jurisdição constitucional como a que, segundo a jurisprudência norte-americana referente à justiciability doctrins, protege as polical questions". Gustav Zagrebelsky. El derecho dúctil, p. 64.

[15] "A Corte para o dualismo constitucional é uma instituição conservadora da vontade popular tal como esta é expressada nos momentos constitucionais". Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 18.

[16] Cf. Hans Kelsen. La garantia constitucional de la constitucion.

[17] Cf. Carl Schmitt. Defensor de la constitucion. Complementarmente, cf., também, do mesmo autor, A crise da democracia parlamentar, O político, Teoria de la constitucion.

[18] Carl Brent Swisher organizou uma coletânea das principais decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. Cf. Carl Brent Swisher. Decisões históricas da Corte Suprema, p. 173.

[19] Trata-se da doutrina "iguais mas separados" adotada pela legislação de Louisiana. Voto do juiz Brown: "A constitucionalidade deste ato é posta em dúvida sob a alegação de que entre em choque tanto com a 13ª Emenda, que proibiu a escravatura, quanto com a 14ª Emenda, que proíbe certas leis restritivas por parte dos Estados. [...] Consideramos a subjacente improcedência do argumento dos suplicantes [...]". Carl Brent Swisher. Decisões históricas da Corte Suprema, pp. 101-3.

[20] Warren apresentou argumentos semelhantes ao do juiz Harlan, no voto dissidente do caso Plessy v. Ferguson. Harlan: "Nossa Constituição é cega quanto à cor e nem conhece nem tolera classes entre cidadãos". Carl Brent Swisher. Decisões históricas da Corte Suprema, p. 103.

[21] Na doutrina racionalista da separação de poderes, Judiciário, Executivo e Legislativo são separados e nenhum interfere na atividade do outro órgão. No entanto, no início do século XIX, no caso Marbury v. Madison, o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos proclamou a competência da Suprema Corte de invalidar um ato do Congresso Nacional que fosse inconstitucional; ainda que Marshall argumentasse que esta era uma conclusão óbvia decorrente da própria natureza da atividade jurisdicional, o certo é que a Constituição não dispunha expressamente desta maneira e nem era esta a posição dominante na comunidade jurídica e política. Tanto não era que a Europa só conheceu algo semelhante um século depois e que mesmo nos Estados Unidos a doutrina Marshall só teria ampla difusão cinqüenta anos depois. Outras decisões marcam a trajetória da Suprema Corte para o ativismo. Pouco antes da Guerra Civil norte-americana, a Suprema Corte invalidou uma decisão do Congresso, o Compromisso Missouri, no caso Dred Scott. Durante o governo F. D. Roosevelt, a Suprema Corte adotou novamente uma posição de confronto com os poderes políticos (Executivo e Legislativo) e invalidou a legislação de proteção social do Partido Democrata; como se verá adiante, ocasionando forte reação ao perigo do governo dos juízes. Na década de 1950, a Suprema Corte novamente adota uma posição polêmica; desta vez, no entanto, o ativismo judicial buscava não invalidar leis do Congresso, mas dispor sobre o sentido da Constituição atualizado a interpretação constitucional; o caso Brown v. Comissão de Educação é o mais conhecido: abolia o sistema de segregação racial e proibia toda e qualquer legislação segregacionista sob o argumento de que a igualdade era direito prevista na Constituição. O debate é retomado com a eleição de Nixon e depois com a eleição de Reagan para Presidente dos Estados Unidos, ambos do Partido Republicano; os dois presidentes prometeram uma composição da Suprema Corte que se mantivesse fiel aos valores dos Fundadores da República, ou seja, juízes que interpretasse a Constituição no seu sentido original e não pelos juízos morais dos próprios juízes. Assim, a posição auto-restritiva da Corte recebeu a denominação de interpretativistas, originalistas ou textualistas. Os defensores da Corte Warren, isto é, de uma posição ativa da Corte atualizando os valores constitucionais receberam a denominação de não-interpretativistas ou de adeptos da interpretação livre.

[22] [Os interpretativistas] "propugnam uma interpretação 'estrita', segundo a tradição constitucional norte-americana (entenda-se a tradição anterior à revolução judicial de 1937) e sua corrente mais extremista é o originalismo – strict constructionism nas palavras de Nixon. Pelo contrário, os defensores do não interpretativismo [...] sustentam a existência de cláusulas abertas [...] que facultam ao Juiz para optar entre várias interpretações, recorrendo a fontes ou valores não explícitos no mero texto constitucional. Normalmente são partidários da jurisprudência dos valores, ainda que Dworkin não faça deste tema o centro de sua teoria [...]". Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, pp. 45-6.

[23] "Basicamente, o originalismo sustenta que o único que tem de reger a interpretação da Constituição é a vontade ou intenção dos constituintes (original intent). [...] Como justificação, o originalismo alega que a autoridade dos constituintes – do povo – não pode suplantar-se pela de um simples tribunal: o povo falou em 1787, 1791 ou 1868, e só o povo pode retificar e completar sua vontade de então". Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, pp. 53-4.

[24] Vale lembrar que a distinção entre conservadores e liberais nos Estados Unidos não tem o mesmo sentido que a distinção no Brasil e na Europa. O liberal nos Estados Unidos é o equivalente ao progressista, ao social-democrata ou ao socialista em outros países.

[25] "Há respostas monistas para essa questão – que tentam reconciliar a revisão judicial com as premissas fundamentais da democracia monista. Assim, conservadores constitucionais como Alexander Bickel, políticos de centro como John Ely, e progressistas como Richard Parker propuseram papéis para a Suprema Corte com a finalidade de operar premissas monistas". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, pp. 10-11.

[26] E frente ao originalismo 'fundamentalista' de Bork, Ely nega – e com toda razão – validez ao interpretativismo estrito e literal, e admite o valor 'atual' democrático e puramente procedimental. Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, p. 107.

[27] "Assim, a famosa sentença Roe v. Wade, 410 US 113 (1973), que constitucionalizou o aborto, ao prescindir da original intent, carece de fundamento constitucional, e se baseia em preceitos morais – logo não neutrais [...] – e na subjetividade dos juízes, que deste modo impõem seus pontos de vista ao povo [...]". Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, p. 54.

[28] Bork afirma que 'o poder judicial não tem outro papel que julgar mais que o de aplicar a lei de uma maneira imparcial', [...]. A idéia de 'neutralidade' ou de 'imparcialidade' constitui uma dos pontos centrais da teoria originalista. Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, p. 55-6.

[29] Não deixa de ser significativo que tanto Bork e os originalistas como Ely (e na Alemanha Peter Haberle) rechacem a constitucionalização de valores (de todo tipo para Bork, só substantivos segundo Ely). Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, p. 108.

[30] "Tanto o monismo constitucional quanto o dualismo constitucional são teorias democráticas no sentido que ambos crêem que na última autoridade constitucional é o povo e que o povo tem absoluta autoridade para mudar também os princípios mais substanciais da atual constituição. Só diferem na forma em que a vontade popular se expressa nas instituições de uma democracia moderna". Bruce Ackerman e Carlos F. Rosenkrantz. Tres concepciones de la democracia constitucional, p. 22.

[31] Como é o caso da doutrina de Bork e de Bickel, incluídas nos argumentos da teoria de Ely.

[32] Miguel Beltran destaca a teoria de Ely no embate entre valores substantivos e valores adjetivos: "[...] representado pela tese de John H. Ely (e na Alemanha por uma similar de Peter Haberle). A teoria de Ely, inspirada na idéia de 'sociedade aberta' de Sir Karl Popper [...] sustenta que não é missão do Juiz constitucional defender ou constitucionalizar valores substantivos ou materiais: o único valor objetivo, e portanto defensável pela Suprema Corte, é o valor democrático ou participativo. De maneira que não se critica a jurisprudência dos valores em si mesma, mas simplesmente seu aspecto material ou substantivo, posto que é subjetivo e arbitrário, e em conseqüência contrário aos princípios democráticos. Miguel Beltran. Originalismo e interpretacion, p. 48.

[33] Ely denomina também de conflito entre o textualismo e a interpretação livre. Cf. John Hart Ely. Democracia y desconfianza, p. 19.

[34] John Hart Ely. Democracia y desconfianza, p. 130.

[35] Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, p. 81.

[36] "Obviamente, nossos representantes eleitos são as últimas pessoas em quem confiamos para identificar qualquer destas duas situações". John Hart Ely. Democracia y desconfianza, p. 130.

[37] "[...] como o tem feito primordialmente a Corte Suprema, de assegurar a livre e efetiva eleição popular de nossos representantes. Mas a eleição popular significará relativamente pouco se não sabemos o que fazem nossos representantes". John Hart Ely. Democracia y desconfianza, p. 155.

[38] "Temos visto no capítulo V como vários dos direitos que não estão mencionados na Constituição deveriam, todavia, receber proteção constitucional pelo papel que desempenham em manter abertos os canais de mudança política. Uma análise similar parece aplicável ao âmbito do que nos ocupamos agora, o da proteção das minorias". John Hart Ely. Democracia y desconfianza, p.207.

[39] Jorge Hage Sobrinho. "Democracy and distrust – a theory of judicial review" – John Hart Ely: resumo e breves anotações à luz da doutrina contemporânea sobre interpretação constitucional, p. 209.

[40] Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, p. 82.

[41] Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, p. 82.

[42] Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, p. 96.

[43] Diferentemente de Ely, que confia na capacidade do povo para escolher seus representantes e controlá-los, Dworkin não confia na maioria, seja parlamentar, seja do eleitorado. Assim, tem-se um Dworkin precavido: "A teoria constitucional em que se baseia nosso governo não é uma simples teoria da supremacia das maiorias. A Constituição, e particularmente a Bill of Rights (Declaração de Direitos e Garantias), destina-se a proteger os cidadãos (ou grupos de cidadãos) contra certas decisões que a maioria pode querer tomar, mesmo quando essa maioria age visando àquilo que considera ser o interesse geral ou comum". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, pp. 208-9.

[44] "[...] as decisões a respeito dos direitos contra a maioria não são questões que devam, por razões de equidade, ser deixadas a cargo da maioria". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério.

[45] "Se queremos a revisão judicial – se não queremos anular Marbury contra Madison – devemos então aceitar que o Supremo Tribunal deve tomar decisões políticas importantes. A questão é que motivos, em suas mãos, são bons motivos. Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar -, e que deve tomas essas decisões elaborando e aplicando a teoria substantiva da representação, extraída dói princípio básico de que o governo deve tratar as pessoas como iguais". Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, p. 101.

[46] Dworkin, a partir da p. 223 testa diversos argumentos em defesa da supremacia judicial e em defesa da supremacia legislativa. Na p. 225 explica o argumento de Alexander Bickel de moderação judicial: "Devemos, portanto, nos voltar para outra linha de argumentação a partir da democracia, que sustenta que as instituições democráticas, tal como o poder legislativo, têm mais probabilidade do que os tribunais de chegar a resultados mais bem fundamentados sobre os direitos morais dos indivíduos". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 225. E, no mesmo sentido: "O fundamento alternativo de um programa de moderação é uma teoria da deferência judicial. Ao contrário da teoria cética, essa teoria supõe que os cidadãos têm direitos morais contra o Estado, além dos que o direito expressamente lhes garante. Contudo, essa teoria assinala que o caráter e a força desses direitos são discutíveis, e afirma que instituições políticas, outras que os tribunais, são responsáveis pela decisão sobre quais direitos haverão de ser reconhecidos". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 217. E, ainda, "Ao contrário, o programa da moderação judicial afirma que os tribunais deveriam permitir a manutenção das decisões de outros setores do governo, mesmo quando elas ofendam a própria percepção que os juízes têm dos princípios exigidos pelas doutrinas constitucionais amplas [...]". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 216.

[47] Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 228.

[48] Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 229.

[49] Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 229.

[50] Ronald Dworkin. Uma questão de princípio, p. 9.

[51] Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 230.

[52] "A concepção centrada nos direitos parece mais vulnerável a objeções filosóficas. Supõe que os cidadãos têm direitos morais – isto é, outros direitos que não os declarados pelo direito positivo – de modo que uma sociedade pode ser sensatamente criticada com base no fundamento de que sua legislação não reconhece os direitos que as pessoas têm. Muitos filósofos, porém, duvidam que as pessoas tenham quaisquer direitos que não os concedidos a elas por leis ou outras decisões oficiais, ou mesmo que a idéia de tais direitos faça sentido". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 231.

[53] "Essa interferência na prática democrática exige uma justificação. Os redatores da Constituição presumiram que essas restrições poderiam ser justificadas através de um apelo aos direitos morais que os indivíduos possuem contra a maioria, direitos que – afirma-se – disposições constitucionais, tanto 'vagas' como precisas, reconhecem e protegem". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 209.

[54] "O programa do ativismo judicial sustenta que os tribunais devem aceitar a orientação das chamadas cláusulas constitucionais vagas no sentido que descrevi [...] Devem desenvolver princípios de legalidade, igualdade e assim por diante, revê-los de tempos em tempos à luz do que parece ser a visão moral recente da Suprema Corte, e julgar os atos do Congresso, dos Estados e do presidente de acordo com isso". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 215.

[55] "De fato, a sugestão de que os direitos podem ser demonstrados ao longo de um processo histórico, e não por um apelo a princípios, mostra ou uma certa confusão ou uma falta de interesse real pelo que são direitos. Uma reivindicação de direitos pressupõe um argumento moral e não pode ser estabelecida de nenhum outro modo". Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 230.

[56] Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério, p. 232.

[57] "Em oposição, a primazia da soberania popular é desafiada por uma segunda teoria moderna. [....] os princípios democráticos, seus anseios populares são limitados por compromissos e direitos fundamentais. Não é de se admirar que os adeptos dessa teoria divirjam no que diz respeito à identificação dos direitos considerados fundamentais. Conservadores como Richard Epstein dão ênfase ao papel fundamental do direito de propriedade; liberais como Ronald Dworkin valorizam o direito ao respeito e à atenção igualitária; coletivistas como Owen Fiss, apontam para grupos menos favorecidos". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 13.

[58] Sobre a Suprema Corte: "Quem deu a nove velhos juristas a autoridade de contestar os julgamentos de políticos democraticamente eleitos?". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 10.

[59] "Tanto quanto os monistas, os dualistas são também democratas – eles acreditam que o povo constitui a autoridade maior nos Estados Unidos. Eles discordam apenas do modo normalmente utilizado pelos políticos eleitos ao legislar em nome do povo". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 13.

[60] "O monista trata todos os atos de revisão normativa como algo presumidamente antidemocrático e luta, por meio de argumentos engenhosos, para poupar o Supremo do 'obstáculo contramajoritário'. Em contrapartida, o dualismo interpreta o desempenho da função de preservação pelos tribunais como elemento essencial de um regime democrático bem ordenado. Em vez de ameaçar a democracia, frustrando as demandas legislativas da elite política de Washington, os tribunais a servem, protegendo princípios duramente conquistados da cidadania mobilizada, contra a corrosão das elites políticas que falharam na obtenção do sólido apoio popular para suas inovações". Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 12.

[61] Bruce Ackerman. Nós, o povo soberano, p. 16.

[62] Sobre o tema, cf., também, Eliseo Aja (ed.) Las tensiones entre el tribunal constitucional y el legislador en la Europa actual, Enrique Alonso Garcia. La interpretacion de la constitucion, Eduardo Garcia de Enterria. La constiitucion como norma y el tribunal constitucional, Ernesto Garzón Valdez. El consenso democrático, Roberto Gargarella. La dificuldad de defender el control judicial de las leis, José Jardim-Rocha Jr. Supremacia da constituição ou supremacia do "defensor" da constituição?, Matônio Mont'Alverne B. Lima. Justiça constitucional e democracia, Ingeborg Maus. Judiciário como superego da sociedade, Christofer Wolfe. La transformacion de la interpretacion constitucional.

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